sábado, 3 de dezembro de 2011

Intemporalidade

Dois médicos caminham em direção à praça central da vila. Era noite. Vão trocando algumas considerações sobre o paciente que havia dado entrada nessa manhã no hospital onde ambos trabalham. Trata-se de um caso de fácil tratamento que não representaria perigo algum para qualquer pessoa. Contudo, o paciente em causa, por motivos religiosos, não pode receber o tratamento indicado para a situação. Uma questão de simples e rápida resolução transforma-se de repente e por motivos alheios à competência dos clínicos, numa situação que faz perigar a vida do doente.
Um dos médicos, mais novo, não compreendendo que possam existir razões que se coloquem à frente da salvaguarda da vida humana, debate-se com a sua consciência. O mais velho e experiente, ainda que com grande mágoa e frustração, tenta explicar que o respeito pelas leis, ainda que não se reveja nelas, deve sobrepor-se ao que individualmente consideramos correto ou incorreto.
Chegados à praça, ocupam uma mesa numa esplanada, protegida da noite sob uma arcada, continuando o debate sobre qual o valor mais alto, o imperativo de consciência ou o imperativo legal, ainda que o imperativo legal seja, no caso, uma lei de Deus, entendida com tal apenas pelos praticantes daquela religião.
Enquanto decorria esta dramática troca de ideias, a praça assistia a uma peça de teatro, sem palco, em que os atores se misturavam com os transeuntes e com alguma assistência, cativada pelo inusitado da representação que usava a ágora da vila como cenário.
Reconheceram de imediato a peça. Nesse momento duas atrizes continuavam a atuação mais junto à mesa onde se tinham sentado. Eram Antígona e Isménia que se confrontavam com a morte dos dois irmãos e com a proibição, imposta por Creonte, de dar a Polínice um enterro digno.
Antígona não concebia que não fosse dado um enterro digno a seu irmão, assumindo que ela própria sepultaria o irmão, levando as suas forças ao limite.
Isménia tenta em vão convencer a irmã a não levar por diante o que considera ser uma loucura. Amaldiçoada por Antígona, Isménia reconhece no ato da irmã a dedicação ao irmão que ama.
O clássico de Sófocles transbordava das falas das duas protagonistas com a força de uma peça sempre atual, uma peça de onde, ainda hoje, é possível retirar ensinamentos. Um clássico é isso mesmo, uma obra que vale sempre a pena ler, ou melhor, reler, uma vez que quem realmente aprecia boa literatura acaba sempre por voltar aos clássicos, como nos sugere Calvino.
No plano estético são obras cuja preocupação com a forma as elevou ao patamar da imortalidade, tornando-as em referências obrigatórias no campo da história da literatura. Para além da forma cuidada própria das civilizações Grega e Latina, é igualmente impressionante a atualidade dos seus conteúdos e a sua abrangência.
A própria forma pouco ortodoxa como a peça estava a ser encenada demonstra a intemporalidade da mesma. Uma obra com cerca de 2500 anos, que permite a um encenador tamanha liberdade criativa demonstra bem o génio encerrado nos seus escritos.
Após estes momentos em que o seu pensamento deambulou pelos milénios que a peça sobreviveu sempre atual, o jovem médico imaginou Antígona a tratar o seu paciente. A sua força seria suficiente para impor a vontade da sua consciência e salvar o doente de uma morte certa. A mesma força que a levou a sepultar o seu falecido irmão, arriscando a própria vida.
Do outro lado Isménia, certa do que é correto, mas receosa de enfrentar a ira dos que ainda que não estando corretos têm poder para impor a sua lei.
Era impressionante a semelhança entre a situação que vivia e a situação que Sófocles descrevera séculos atrás.
Muito em breve a sorte do seu doente estaria decidida. O jovem médico só esperava que não fosse em tragédia. Pensou melhor e concluiu que dificilmente não haveria tragédia. Salvasse ou não salvasse o doente a tragédia aconteceria.
O pensamento levou-o novamente para a peça que decorria. Os atores estavam agora mais longe. O local tinha ficado mais sossegado. De repente voltou a ouvir o seu colega que entretanto tinha continuado a falar durante o tempo em que todos os pensamentos tinham passado pela sua cabeça.
Já tinha lido Antígona duas ou três vezes sem nunca se ter dado verdadeiramente conta do caráter intemporal das questões que continha. A história que vivia passava-se nos dias de hoje mas de repente viu-se a imaginar quantas pessoas, no passado, olharam e se reviram nesta peça e quantas a olhariam no futuro para se reverem.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Diário de um pároco de aldeia

Robert Bresson em “Diário de um Pároco de Aldeia” conta-nos a história de um jovem padre colocado na sua primeira paróquia, a aldeia francesa de Ambricourt. Este padre padece de problemas de saúde, que lhe conferem uma fraca estabilidade física e alguma falta de equilíbrio psicológico. O seu corpo conseguia apenas aguentar pão e vinho, por vezes com um pouco de açúcar. Assistimos assim no filme a uma caminhada no alcoolismo, veneno para a completa destruição do padre.
Este filme retrata as modificações em curso na igreja: de um lado a igreja distante das pessoas, poderosa e autoritária, representada pelo padre de Torcy e a nova igreja das preocupações sociais representada pelo jovem padre.
De certa forma o jovem padre tem dificuldade em impor a sua autoridade e hesita no seu papel de líder espiritual. Perante estas hesitações a população da aldeia não o recebe bem, dificultando-lhe o trabalho e odiando-o. A sua origem pobre leva-o a entrar em disputa com os mais ricos e a questionar-lhes a aparente felicidade.
Enrolado neste turbilhão de álcool, falta de auto-estima e debilitado pela doença, o jovem padre vai começando a questionar a própria existência de Deus.
O filme encontra-se carregado de simbolismos. Para além do referido acima, da questão da “nova” e da “velha” igreja, existem muitos outros. Desde logo a alimentação do jovem padre, apenas pão e vinho, na minha opinião aludindo aos elementos proféticos das escrituras. Os vómitos de sangue e de vinho, aludindo à morte de Cristo, ao seu sangue e ao vinagre que lhe foi dado.
A juventude do padre volta a aludir ao nascimento de uma nova igreja, mais voltada para a sociedade e os seus problemas, mas de certa forma incapaz de os resolver. 
Está assim feita, em traços muito gerais, a sinopse de um filme realizado por um dos maiores realizadores franceses.
Robert Bresson é sem qualquer dúvida um “auter”. É considerado um dos maiores cineastas franceses de sempre e um dos mestres do minimalismo. Bresson, pela sua concepção renovadora do cinema, foi o mestre que abriu caminho a outros grandes nomes do cinema, muito especialmente aos da nouvelle vague.
Diz-se de Bresson que era um realizador que não fazia concessões de nenhuma ordem. Era a sua visão que sempre imperava. Exemplo disso é a sua concepção de adaptação. O filme “Diário de um Pároco de Aldeia” é de certa forma pouco fiel ao livro de Bernanos, uma vez que para atingir os mesmos objectivos, segue diferentes caminhos. Os próprios diálogos do filme não são retirados do livro.
A questão da teoria de auter é polémica. Reduzida ao absurdo, basta saber quem realizou o filme para saber se é bom e terá surgido como oposição ao cinema tradicional, especialmente o de Hollywood. Assim, dentro desta análise, podem surgir filmes maus mas que por serem de um determinado realizador conquistam um estatuto diferente.
Não será o caso deste filme de Bresson, considerado mesmo por Tarkovski o seu filme favorito.
Da mesma forma, esta teoria pode fazer com que se rejeitem realizadores sem sequer nos darmos ao trabalho de ver os seus filmes
Recordo igualmente a formação de Bresson em artes plásticas e filosofia que lhe possibilitam uma visão do cinema muito mais complexa.
Em minha opinião, a teoria de auter constitui-se mais como uma classificação do que como uma forma de interpretação. Sendo uma forma de interpretação, sem duvida que podemos considerar o filme em análise como “de auter”. A Câmara de Bresson, neste filme, captou muito mais do que imagens, realizando uma verdadeira obra de arte, na opinião de muitos, muito superior ao livro que a motivou.

Walden ou a vida nos bosques

Eduardo Lourenço refere que “(…) em nome das informações de que dispunham acerca dos costumes e práticas dos habitantes do novo mundo, os Índios, podiam entrar na categoria dos seres “naturalmente escravos”(…)”. Lourenço (2005: 31).
Partirei desta afirmação para analisar a obra de Henry David Thoreau, Walden ou a vida nos bosques. Trata-se da mais conhecida obra deste escritor e pensador que é hoje em dia considerado um dos maiores vultos da cultura norte-americana. 
Hoje é quase unanimemente aceite, à excepção de algumas posições mais radicais, que de certa forma são cultural e socialmente condenadas, que não há culturas superiores ou inferiores, havendo, isso sim, culturas diferentes. O excerto de A morte de Colombo lembra-nos que as coisas nem sempre foram assim e que tempos houve em que as culturas eram julgadas pelos seus costumes e práticas, havendo seres humanos que podiam ser considerados “naturalmente escravos”. Esta forma de pensar tem inerente uma ideia de superioridade da Europa.
O novo mundo, descoberto ou achado por Colombo, constituía uma promessa de um paraíso, de um novo começo, de certa forma a terra prometida. Contudo, o novo mundo só era novo para os europeus. As Américas eram habitadas e desenvolviam-se neste continente várias civilizações, com diferentes graus de desenvolvimento técnico mas todas elas em comunhão com a Natureza e vivendo de forma auto-suficiente.
A chegada dos europeus, com um grau de desenvolvimento técnico mais avançado, dita a subjugação dos Índios e em muitos casos tentativas de extermínio destes. A ocupação do território leva a um afastamento cada vez maior da Natureza e do modo de vida ancestral dos povos Índios. De facto, estava a ser transportado para a América o modo de vida europeu. A Europa vivia uma revolução industrial que mudava a face do continente e mudava essencialmente o modo de vida das pessoas. Registava-se um afluxo de pessoas para as cidades, para alimentar a crescente procura de mão-de-obra para a indústria e também porque no campo deixava de haver tanta necessidade de trabalhadores dado a mecanização crescente da agricultura.
Henry David Thoreau, na obra que me proponho agora a analisar, Walden, ou a vida nos bosques, dá-nos conta da sua desilusão relativamente ao estilo de vida “moderno” e da sua procura de uma vida auto-suficiente.
Thoreau encontrava-se insatisfeito com o modo de vida da sociedade. Entendia que as pessoas viviam para ter muito mais do que é realmente necessário. Referia nomeadamente em relação às habitações que “das grutas evoluímos para os tectos feitos de folhas de palmeiras, cascas e galhos de árvores (…). Por fim, desconhecemos o que é viver ao ar livre…” Thoreau (2009: 43).
Thoreau construiu uma cabana junto ao lago Walden para onde foi viver abdicando de muitos confortos, mas procurando uma vida dedicada ao essencial. O autor procurava escapar a uma sociedade que começava a ficar densamente industrializada e onde se praticava uma agricultura intensiva.
No fundo Thoreau procurava fugir aquilo que era a cultura e sociedade europeias implantadas no novo mundo. Muito cedo, falamos do séc. XIX, Thoreau assumia-se contra a sobrevalorização dos bens materiais em detrimento dos bens espirituais.
A questão da escravatura é pertinente. Nos Estados Unidos só foi decretada a libertação de todos os escravos em 1863, um ano após a morte de Thoreau. Contudo o autor, mostrava-se contra a escravatura, sendo contra o modelo europeu, que assentava o seu desenvolvimento no trabalho escravo.
Arrisco mesmo dizer que Thoreau considera que os verdadeiros escravos são os que não se conseguem libertar da necessidade de estarem rodeados de confortos e bens materiais. Nos anos sessenta do século passado assistiu-se ao movimento hippie que de certa forma estava imbuído de valores semelhantes aos que Thoreau defendeu mais de uma centena de anos antes.   
Thoreau não só não considerava que havia povos “naturalmente escravos” como entendia que o melhor modo de vida era precisamente o desses povos. Perante esta perspectiva, a descoberta da América pelos “ocidentais” não terá sido muito benéfica pois veio de certa forma destruir um modo de vida que para Thoreau era o mais indicado. 
Thoreau é uma daquelas pessoas que nascem muito à frente do seu tempo. Não só na questão da escravatura, como na questão dos valores que defendia. Na minha opinião trata-se de posições um pouco radicais que poderiam contudo servir de base para a construção de uma sociedade mais justa, permitindo um são convívio entre as pessoas e a Natureza e entre todas as pessoas.          

Três imagens para um retrato da América

A imagem que cada um de nós tem da América é de certa forma induzida pelos mais variados meios, literários, cinematográficos, noticias, entre outros. Essa imagem quase nunca corresponde a um estudo fundamentado mas sim a uma percepção baseada em observações de determinados pontos de vista, poucas vezes com contraditório.
Quantos acham que sabem muito sobre a América apenas porque viram dois ou três filmes.
A América é complexa e a generalidade das imagens que temos dela são algo simplistas.
Respondendo ao desafio lançado, escolhi o romance de John Steinbeck, As Vinhas da Ira, o personagem Bill Kilgore, do filme Apoclypse Now Redux e uma fotomontagem de uma mulher africana carregando um hambúrguer e um balde em forma de lata de coca-cola (de dieta).
Começando pelo livro de Steinbeck, escolhi-o por retratar a história de uma família que parte em busca de um El Dourado, após perder a esperança de sobreviver na sua terra.
Esta narrativa exprime, na minha opinião, muito daquilo que realmente é a América. Por um lado, é terra de pessoas lutadoras que buscam a sua “terra prometida”, por outro é terra de capitalismo selvagem e de tensões sociais sempre latentes e prontas a deflagrar.
No contexto da grande depressão, a família Joad perdeu as suas terras alugadas, na sequência das grandes tempestades de areia que assolaram o centro dos Estados Unidos e das más colheitas daí resultantes.
A história desta grande migração para Oeste, repete de certa forma a migração de muitos povos para a América, muito em particular a dos emigrantes irlandeses, que na década de 40 do séc. XIX, fugiam da fome no seu país.
Por este ponto de vista, a situação narrada por Steinbeck é a renovação da terra prometida americana, da terra das oportunidades onde todos seriam felizes e alcançariam o desafogo financeiro.
Contudo, no seu caminho para Oeste, através de praticamente meio continente americano, as dificuldades são imensas e grande parte delas colocadas por outros americanos. É o caso da polícia, que persegue os migrantes, dos patrões que os vão explorando, manipulando os ordenados, dos vendedores que inflacionam os bens, entre outros.
A imagem que este livro cria em quem o lê é desde logo a de um país que oferece oportunidades mas que impõe muitos obstáculos para as conquistar e onde se encontram também muitos ódios. Fica igualmente um testemunho da dicotomia entre ricos e pobres e de uma sociedade estratificada.
Concluindo esta análise, termino salientando a grande prova de altruísmo e solidariedade com que o livro termina. Uma das mulheres da família, estando a acabar de perder um filho, alimenta do seu peito um moribundo desconhecido que estava a morrer de fome. Creio também ser esta imagem transponível para a América, que muitas vezes faz chegar ajuda humanitária a outros povos.
A imagem seguinte, a personagem Bill Kilgore, é, na minha opinião, demonstrativa do espírito justiceiro da América. Bill Kilgore é um soldado americano a prestar serviço no Vietname, comandando uma unidade de helicópteros. Kilgore é um excêntrico amante de surf e um homem aparentemente magnânimo. É, na minha opinião, a personificação do cowboy americano.
Kilgore é um fanfarrão que vive mais de acordo com a sua própria lei do que respeitando a hierarquia. É uma daquelas pessoas que parecem ter uma aura protectora e que sabemos que não lhe irá acontecer nada. A sua motivação para ajudar quem precisa é a sua paixão pelo surf e não as ordens vindas da hierarquia. Também neste aspecto a América tem muitas vezes liderado vários processos por razões que não são as óbvias ou as mais ortodoxas.
Kilgore demonstra ser magnânimo quando pretende dar de beber a um adversário ferido. Esta nobreza desaparece contudo quando alguém lhe diz que um dos soldados recém chegados é um conhecido surfista e o seu adversário fica sem beber.
Eduardo Lourenço fala-nos no espírito western americano. A América tem necessidade de encontrar novos inimigos a cada dia que passa, tem necessidade de se armar e de andar armada ainda que sem inimigo à vista. Kilgore representa tudo isso. Não se limitou a cumprir ordens, teve que aniquilar o inimigo apenas para conseguir surfar. Este homem seria capaz de começar uma guerra se lhe dissessem que havia boas ondas num local que não fosse seu.
Bill Kilgore parece demonstrar uma grande preocupação com os civis que estão a ser evacuados e na ajuda aos feridos, situação que é também muito grata à América.
A 1.ª guerra do Iraque foi também a primeira guerra praticamente transmitida em directo. Também na cena da cavalaria aérea encontramos uma equipa de televisão, cuja preocupação aparente não é a de noticiar mas si a de captar imagens com impacto de forma a recriar uma guerra-espectáculo.
Saliento por último o dramatismo dado ao ataque, com a transmissão de Wagner, com o objectivo de aterrorizar o inimigo. É uma carga dramática assinalável, ao bom estilo americano que coloca uma boa dose de dramatismo e carga simbólica em tudo.
A terceira imagem, talvez a mais óbvia, representa a globalização. A globalização não é algo que se possa atribuir apenas à América mas será talvez o país que mais tem a ganhar com ela. A maior economia do mundo não poderá nunca abdicar de produzir e grande parte do que produz tem que ser consumido noutras partes do planeta.
A Coca-Cola será porventura a marca mais reconhecível em todo o mundo, arriscando-me dizer que será consumida em todos os países, mesmo naqueles que são inimigos viscerais. O hambúrguer, por seu lado, será o símbolo da comida rápida.
Mais do que simples alimentos ou marcas estes produtos representam o modo de vida americano e o modo de vida americano já é o modo de vida de muitos outros povos e países.
A mulher da fotografia podia ser representada de muitas outras formas, com uma roupa da Nike, com um computador Microsoft ou Apple, a pesquisar no Google, a comer no Pizza Hut ou de muitas outras formas. O essencial da foto é que de certa forma o mundo é cada vez mais uniforme e muito disso se deve à América.
Uma última referencia para este modo de vida: a alimentação à base de comida rápida não é saudável, sendo excedente em calorias. Os americanos e os europeus resolvem a situação recorrendo a bebidas de dieta, como é o caso da foto.

Uma biblioteca no futuro

Um edifício para uma biblioteca terá sempre que ser idealizado tendo em consideração o conceito subjacente à própria biblioteca, ou seja, daquilo que se pretende que seja uma biblioteca. Estou convicto que as funções básicas de uma biblioteca não deverão mudar muito continuando a ter funções educativas, culturais, recreativas e informacionais, sem grandes mudanças no paradigma.
O ano 2025 está a menos de década e meia de distância, não sendo propriamente um período muito longo. Sabemos contudo que apesar disso muito pode acontecer em cerca de 15 anos.
Actualmente os edifícios são já pensados e construídos para que a sua utilização seja o mais confortável, segura e racional possível. No futuro sê-lo-ão ainda mais.
No futuro os edifícios das bibliotecas terão controlo automático da temperatura ambiente, controlo automático da humidade e qualidade do ar. Todos estes factores são essenciais não só para o conforto dos utilizadores como do ponto de vista da preservação do fundo documental. Todas estas situações são já controladas não o sendo contudo de forma automática. A automação trará muitas vantagens ao nível da eficácia dos sistemas e da redução do consumo energético.    
A iluminação dos edifícios deverá ser inteligente, ligando-se automaticamente nos locais onde é necessária, com a intensidade necessária e desligando-se logo que deixe de ser necessária. Para que a iluminação artificial seja utilizada o menos possível, os edifícios serão pensados para aproveitar ao máximo a luz natural.
As estruturas serão pensadas para ter facilidade de utilização, flexibilidade e adaptabilidade. Referindo-me mais concretamente aos dois últimos factores, a sua aplicação poderá permitir alguma redução de custos dado os edifícios poderem ser de menores dimensões. Neste caso seriam constituídos por espaços flexíveis, adaptáveis a situações excepcionais. Concretamente, será necessário uma biblioteca dispor de uma sala onde realiza apenas algumas actividades, estando essa sala sem utilização durante grande parte do tempo?
Pessoalmente estou convicto de que as bibliotecas avançarão para a digitalização dos seus documentos e para a sua disponibilização em linha. Este avanço, que de resto já acontece em algumas situações, permitirá aos utilizadores a consulta dos documentos a partir de locais fora da biblioteca ou a sua consulta em computadores da própria biblioteca ou, futuramente, em dispositivos tipo Kindle, para a leitura de periódicos. Esta situação pode apresentar algumas vantagens do ponto de vista da preservação dos documentos uma vez que deixariam de estar acessíveis aos utilizadores, evitando-se alguma degradação.
Para que esta situação possa ser real e passível de concretização é necessário que o edifício esteja preparado e dotado de redes de comunicação e informáticas que permitam uma utilização fiável.
Do ponto de vista dos terminais de computador, estes na prática não serão computadores autónomos, sendo apenas terminais de um computador central, facilitando a manutenção. Os utilizadores terão acesso a um ecrã táctil que está embutido nas mesas, não sendo necessário teclado ou rato para a sua utilização. Desta forma, com os ecrãs baixados, as mesas poderão ser utilizadas para outros fins.
Mediante a identificação do utilizador, o software apresenta todas as estatísticas do leitor e dará mesmo sugestões de leitura. No caso da leitura de notícias, o computador dará ao utilizador as noticias já seleccionadas de acordo com as suas preferências.
Desta forma o edifício poderá mesmo ser pensado de forma a não existirem documentos no circuito do utilizador, estando todos acessíveis no circuito informático.
Na minha opinião, independentemente de todos os avanços tecnológicos que possam vir a acontecer, uma biblioteca deverá sempre ser um espaço de convívio e troca de ideias. Todas as bibliotecas públicas deveriam ter um espaço informal onde os utilizadores pudessem trocar ideias, realizando mesas-redondas, tertúlias ou simples trocas de ideias, seja de forma organizada, seja de forma espontânea. Assim, vejo com bons olhos que no futuro uma biblioteca possa ter um bar ou mesmo um restaurante.
É difícil fazer futurologia, tanto mais quando se trata de uma área que tem mudado muito. Contudo, cada vez mais, é necessário aproximar as bibliotecas dos seus utilizadores e captar mais utilizadores. O próprio edifício pode ser determinante para que isto aconteça. Seja qual for o caminho escolhido, tudo deverá ser feito para que cada vez mais pessoas recorram às bibliotecas.          

Identidades literária e linguística

A Europa é um continente com grande heterogeneidade. Refiro-me a nível linguístico, sendo faladas cerca de 6 dezenas de línguas. Refiro-me também aos costumes, sendo um continente com grandes disparidades culturais, religiosas e sociais. Toda esta diversidade ocorre num território relativamente pequeno.
A Europa tem ainda outra característica que é o facto de em muitas situações as fronteiras linguísticas não coincidirem com as fronteiras políticas. Existem assim vários países onde se fala mais do que uma língua existindo também línguas comuns a vários países. Neste último caso a mesma língua pode assumir algumas características consoante o país onde é falada.
Desta forma a Europa é um continente que por si só estimula a que as coisas não sejam lineares. De facto existem inúmeros exemplos de autores que escreveram em várias línguas ou que desenvolveram a sua obra em vários países.
Exemplo desta situação é a vencedora do Prémio Alemão do Livro de 2010, Melinda Nadj Abonj, uma húngara sérvia, que vive na Suíça, que não teve o alemão como língua materna. De resto as literaturas europeias estão repletas de situações semelhantes: Fernando Pessoa escreveu em inglês, Emil Cioran, Painat Istrati e Alexandru Macedonski escreveram em francês, Jöldan Foldes escreveu em inglês, Kafka escreveu em alemão, Yeats e Synge escreveram em inglês e Erasmo optou mesmo por escrever em latim.
As situações acima referidas podem ocorrer por várias razões, desde logo a simples vontade do autor que o pode levar a escrever numa língua estrangeira. Poderá também justificar-se a escolha dos autores pelo facto de existirem línguas mais universais. Logo, escrevendo numa dessas línguas, o inglês ou o francês, as possibilidades de fazer chegar a mensagem a mais leitores poderá aumentar muito.
Finalmente, cada língua tem a sua própria complexidade e as suas próprias potencialidades, podendo os autores entender que se conseguem expressar melhor em qualquer outra língua que não a sua língua materna.
Muitas outras razões podem levar um autor a desenvolver a sua obra em outra língua ou em outro país. Existem por exemplo autores que por razões políticas ou outras foram forçados a exilar-se, radicando-se no país de acolhimento.
Certo é que todas estas situações conduziram a uma grande riqueza nas literaturas europeias e, na minha opinião, à criação daquilo que podemos considerar uma identidade literária europeia.
Na minha opinião um escritor, por maior domínio que tenha de uma língua estrangeira, fará sempre uma abordagem a essa língua diferente de um nativo desse idioma, não necessariamente com menor qualidade, apenas de forma diferente.
De igual modo considero que um autor que opte por desenvolver a sua obra num país estrangeiro, ainda que escreva na sua língua materna, fá-lo-á influenciado por uma envolvência cultural e social diferente, resultando num produto final necessariamente diferente do que se estivesse no seu país.
Pegando no exemplo de Fernando Pessoa, a sua incursão pela língua inglesa deve-se certamente ao facto de ter tido uma educação baseada no inglês, tendo a sua infância sido passada em Durban, África do Sul. No seu processo educativo tem grande influência o contacto com a literatura inglesa.
Pessoa é sem dúvida o expoente e grande impulsionador do modernismo ou futurismo em Portugal e um dos grandes vultos de sempre da literatura e cultura portuguesas. Este é um facto inabalável podendo parecer um pouco estranho que dos quatro livros que publicou em vida três tenham sido escritos em inglês.
Neste caso concreto, sou levado a concluir que a identidade literária pode não ter qualquer relação directa com a identidade linguística. De facto, Fernando Pessoa, na minha opinião, tinha assim duas identidades linguísticas. Obviamente que falando de Fernando Pessoa, temos que falar em múltiplas identidades literárias mas considero que o facto de ter escrito também em inglês não constitui por si só uma identidade literária, até porque a sê-lo talvez não fossem os textos assinados pelo próprio Pessoa mas talvez por um heterónimo.
No que toca à recepção dos textos em inglês em Portugal, não disponho de dados que me permitam fazer uma análise objectiva e conclusiva. Parece-me contudo que num país com grande taxa de analfabetismo, a poesia, ainda mais escrita em inglês, seria assunto para elites intelectuais. Já em Inglaterra, após várias pesquisas na internet, não me parece que Pessoa tenha tido receptividade digna de registo. Não sabendo sequer se os livros de Pessoa, escritos em inglês, foram editados em Inglaterra, em nenhum local encontrei referencias à importância ou não de Pessoa na literatura inglesa.
Terminada esta análise, mais uma vez concluo que as literaturas europeias se cruzam demasiadas vezes para que não se possa falar numa literatura europeia. Haverá certamente identidades literárias partilhadas por autores de várias línguas e identidades linguísticas diferentes que traduzem identidades literárias semelhantes. 
Termino referindo o caso de Franz Kafka, um dos maiores autores de língua alemã, nascido em Praga, Áustria-Hungria, actual República Checa. A quem pertence o seu legado literário?

Aquele querido mês de Agosto

O filme Aquele querido mês de Agosto é um exemplo de como as limitações orçamentais se podem tornar benéficas. Por falta de financiamento, o realizador partiu com uma pequena equipa para a região do Pinhal Interior, em busca de material documental, para quando retomasse a produção, conforme referido pelo próprio ao jornal Estadão, de São Paulo, em 2009. Contudo, apesar das dificuldades orçamentais, julgo que será o filme português mais premiado de sempre.
Analisando a ficha técnica verifica-se de imediato que vários elementos da produção foram transformados em actores. De resto, é um filme de 2008, realizado por Miguel Gomes, que foi também autor do argumento conjuntamente com Maria Ricardo e Telmo Churro, sendo produtores Luís Urbano e Sandro Aguilar, filmado em cor, com duração de 150 minutos, rotulado de documentário e ficção.
Quando se olha para os actores, constata-se o não profissionalismo dos mesmos. Considero contudo que não sendo profissionais, têm desempenhos de grande qualidade, talvez por conhecerem os temas do filme como parte da sua vida quotidiana.
A sinopse do filme não deixa adivinhar o que realmente se encontra e se vai descobrindo ao longo dos 150 minutos. Mais do que um simples filme com uma componente documental e uma componente ficcional, estes dois géneros fundem-se e vão evoluindo ao longo da acção, misturando-se por vezes e complementando-se outras. Depois de visto o filme ficam algumas questões no ar sobre o que é ficção e o que é realidade, por ser ténue a fronteira que as separa nesta produção. A contraposição dos dois géneros terá já sido explorada por Renoir e Pasolini.
Parece-me contudo que neste caso estamos mais perante uma fusão do que propriamente de uma contraposição. De facto há uma grande complementaridade dos dois géneros. Recordo por exemplo a cena de cantar à desgarrada em casa da Tânia. O que se canta é claramente parte da ficção do filme mas o modo de cantar, quem está a cantar e a situação em que canta pode também ser considerado documental. A própria banda, Estrelas do Alva, vai surgindo ao longo do filme nas partes mais documentais e nas partes mais ficcionais. E que dizer do Paulo “Moleiro”, que sendo bem real, parecerá um personagem de ficção, particularmente para quem não conhece a realidade dos dias desta zona do país.
Estes dois géneros são interrompidos por cenas da própria equipa de produção, com diálogos acerca do próprio filme.
Por todas estas razões este filme é um “outsider”, tendo sido aclamado em várias partes do mundo e em vários festivais de cinema.
O filme aborda vários temas, desde logo um tema muito explorado pelo cinema, os triângulos amorosos, neste caso uma jovem do interior do país e o seu pai possessivo e um jovem que regressa à aldeia para as férias de Verão. A música ligeira ou “pimba” é outro tema recorrente em todo o filme. Finalmente a própria região onde se filma é também um tema.
Este filme transporta-nos a uma das zonas mais esquecidas do país, a uma região desertificada de habitantes que recebe anualmente os seus emigrantes com tudo o que isso implica, nomeadamente alguns choques culturais e civilizacionais.
A região caracteriza-se por altas montanhas, aldeias isoladas, praias que são fluviais, estradas intermináveis de curvas e contracurvas, de subidas e descidas, que o filme tão bem ilustra nas viagens intermináveis dos bombeiros e na da Tânia e do Hélder, de motorizada, que parecem não ter destino.
O filme retrata esta região por vezes de forma quase fantasmagórica. Captou de forma muito intensa o misticismo das procissões, onde acontecem mesmo milagres, jura-se a pés juntos.
No período de Verão, toda esta região é “invadida” por dezenas de arraiais, bailes e concertos onde a música soa toda igual, onde os ritmos são sempre os mesmos. De repente as aldeias voltam a ganhar vida e a meia dúzia de habitantes multiplica-se por muitos.
É esta a cenografia de um filme que se passa em grande parte em planos exteriores. A música e os sons, sempre presentes, dão ao filme um sabor muito genuíno. A música “pimba” é aqui completamente assumida como parte integrante de uma forma de estar, contrariamente ao que acontece muitas vezes. No final o sonoplasta confronta o realizador com esta realidade.
Tendo nascido nesta região e conhecendo-a relativamente bem, sou de opinião que este filme nos traça um retrato extremamente fiel de uma região e das suas gentes. Felizmente não houve orçamento para fazer mais um filme de ficção sobre um triângulo amoroso. Ganhou-se um documento de grande valor antropológico, etnográfico e cultural, para além de um excelente filme que cativa quem gosta de cinema. Miguel Gomes conseguiu realizar um filme que não só ficou na história do cinema como poderá mudar a história do cinema, pelo menos o português. 

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Literaturas Europeias II

A questão de existir ou não uma literatura europeia é complexa estando longe de reunir consenso. A Europa é uma manta de retalhos de línguas, culturas e povos que levanta algumas barreiras ao que se poderia chamar uma literatura europeia.
A grande diversidade linguística coloca desde logo alguns entraves. Na minha opinião, cada língua tem a sua própria estrutura que leva a que a poética de cada “estilo” seja diferente consoante seja escrita em inglês ou em alemão, por exemplo.
Culturalmente os povos europeus diferem muito entre si. Dou aqui como exemplo o caso das religiões: de forma geral o sul é católico, o norte é protestante e o leste é ortodoxo. Em diferentes contextos as ideias assumem formas mais ou menos fortes e têm maior ou menor aceitação.
Desta forma, dificilmente encontraremos uma unidade entre as literaturas dos vários países da Europa, pelo menos uma unidade passível de se localizar no tempo e no espaço de forma simples.
Contudo a Europa, sendo uma manta de retalhos, é também um espaço de certa forma reduzido ao nível geográfico. É um espaço onde as ideias podem “viajar” muito facilmente.
O fio condutor que une as diversas literaturas europeias e que, em minha opinião, nos permite falar de uma literatura europeia, é muitas vezes ténue e difícil de contextualizar. Terá havido épocas em que se terá desfeito completamente esse fio condutor como terá havido outras em que se identifica facilmente.
Considero inegável, por exemplo, que exista uma relação entre D. Quixote, Cândido e o Idiota. Estas três obras têm em comum o anti-herói que se terá iniciado em D. Quixote mas que tem reflexos em Voltaire e em Dostoievski não dos personagens em si mas naquilo que eles representam: a vã busca do sentido.
Não terão também as várias literaturas da Europa uma origem comum que se pode seguir até à época em que Homero compôs a Ilíada e a Odisseia? Não será também a herança latina comum a todas as literaturas da Europa?
São, por exemplo, inúmeras as referências à Grécia mitológica nas obras de grandes autores como são Schiller, Hölderlin, Byron ou Chénier. Na minha opinião não são coincidência estas referencias. São resultado de raízes comuns que apesar de terem evoluído de forma diferente, têm ainda muito de semelhante.
Exemplo de algum desfasamento no tempo de ideias semelhantes é a tentativa de poetas alemães de utilizar formas métricas antigas nas suas poesias, a partir do séc. XVIII. O mesmo havia sido tentado em França e na Inglaterra na época da Renascença, sem resultado. Já em Portugal a métrica utilizada em Os Lusíadas é antiga e funcionou, transformando essa obra num clássico na Renascença.
Apesar de um ou outro movimento não se ter manifestado num ou outro país, é possível encontrar muitos traços comuns entre as várias literaturas.
Outra questão, talvez um pouco formal mas não de somenos importância é a questão de as literaturas de cada país não se limitarem, por vezes, à sua própria língua. São exemplos disso Fernando Pessoa, que escreveu em inglês, Kafka que escreveu em alemão, sendo culturalmente também influenciado pela cultura checa ou ainda o facto de os mais conhecidos autores romenos escreverem em francês.    
Assim, concordo com a frase acima, não só nos séculos XIX e XX, como em toda a história da literatura, tendo em consideração, e aqui relativizando, que uma análise de correntes, escolas e movimentos literários não é linear mas podemos certamente falar em Literatura Europeia uma vez que, na minha opinião, são muitas as perspectivas a partir das quais se encontram pontos em comum entre as várias literaturas nacionais.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Do Estado-Nação ao Estado Cultural

A “história constitui-se apenas se a olharmos e, para a olharmos, devemos estar excluídos dela”. Poderá ter sido a constatação deste facto, que Barthes nos coloca de forma simples e objectiva, que originou a consciencialização da necessidade de preservação da memória colectiva.
No séc. XVIII surge a noção de Estado-Nação.
O Estado-Nação pressupõe uma ideia de pertença a uma cultura, a um grupo coeso, a uma língua e a uma história próprias. Esta ideia provem do Iluminismo e impõe a Razão como a força constituidora do Estado. Tendo a Razão tamanha importância, é considerada fundamental a sua preservação, dado ser a Razão legitimadora do próprio Estado-Nação.
Neste contexto a memória, ou melhor, a preservação da memória surge-nos como o “combustível” e a força dos nacionalismos. O papel dos bibliotecários e arquivistas é sobrevalorizado na sua vertente da custódia, conservação e restauro, sendo esta a base da sua actividade.
Neste contexto, as bibliotecas e os arquivos constituem-se guardiões da cultura do Estado, erudita e intelectualizada, relegando de certa forma a cultura de entretenimento para um plano secundário.
O acesso à informação ganha também importância, aparecendo nesta altura modelos de classificação e indexação que permitem a consulta e o aparecimento de uma vertente menos vocacionada para a custódia e mais para a divulgação.     
O final da II Guerra Mundial trouxe, em simultâneo com o fim de formas de nacionalismo mais radicais, uma certa mudança de paradigma no que concerne à cultura. O Estado-Nação dá assim lugar ao Estado Cultural, procurando novas formas de difundir, salvaguardar e fomentar a cultura. Salienta-se aqui a criação da UNESCO a que se seguiu o Conselho Internacional dos Arquivos.
A cultura passa a ser encarada como um direito de todos, estimulando-se a educação popular e a cultura acessível a todos.
Em oposição à custódia, que pressupõe uma certa ideia de prisão, encontramos a salvaguarda, onde se denota uma certa ideia de liberdade, ainda que com preocupações de difusão.
Nesta perspectiva surgem as bibliotecas locais e regionais, na base de uma pirâmide em cujo vértice superior encontramos as bibliotecas e arquivos nacionais. Os topos das várias pirâmides nacionais, como já vimos, estão ligados e cooperam entre si.
Esta cooperação surgida com a evolução dos Estados-Nação para os Estados Culturais, alavancou progressos na partilha de informação técnica e científica. Permitiu, de igual modo uniformizar os métodos e filosofias de partilha, potenciando ainda mais a partilha e difusão de informação.
Saliento o papel actual das bibliotecas nacionais, que reúnem no seu espólio todo o património documental do país, salvaguardando a história e a herança cultural de um povo, de uma nação ou de um país. Fruto da partilha e da difusão de conhecimento, para além do património documental local, estas bibliotecas reúnem igualmente o que publica exteriormente, ou seja, reúnem a história sob duas perspectivas.    
Actualmente assistimos, na minha opinião, a uma verdadeira revolução. O aparecimento da internet constitui, ainda hoje, uma revolução a vários níveis. Com o seu aparecimento e posterior massificação, a difusão da informação tornou-se infinitamente mais rápida, acessível à grande maioria das pessoas e em maior quantidade.
Esta nova situação, sendo cheia de vantagens, apresenta também alguns perigos, nomeadamente a questão da “ditadura” da tecnologia e a questão do excesso de informação.
Em minha opinião a questão da “ditadura” da informação poderá criar clivagens entre quem possuir tecnologia e conhecimentos técnicos e quem não os possuir. Considero que informação é poder e a sua falta pode ser avassaladora para o futuro e quanto mais fácil for a sua difusão, pior será para quem não obtiver acesso a ela. 
Por outro lado os profissionais da informação são cada vez mais confrontados com informação sem valor. Actualmente e mais do que nunca, a publicação um livro, por exemplo, pode não trazer nenhuma informação nova ou útil, podendo mesmo ser pernicioso.

sábado, 29 de janeiro de 2011

O bibliotecário e a liberdade intelectual

Ortega y Gasset compara o bibliotecário a um “filtro que se interpõe entre a torrente de livros e o homem”. De facto, considerando o bibliotecário responsável pelo desenvolvimento de uma colecção, a frase é pertinente ilustrando bem o seu papel.
Nos nossos dias e cada vez mais, existe um sem número de publicações dos mais variados assuntos e nos mais variados suportes. Para a maioria das bibliotecas é virtualmente impossível reunir todas as edições que à partida seriam de interesse, tornando-se necessário efectuar uma selecção do material a adquirir para o acervo.
Sendo certo que as bibliotecas devem dispor de um documento com a política de desenvolvimento, cabe ao bibliotecário colocar em prática essa política, de forma isenta e intelectualmente livre. Não pode o bibliotecário operar qualquer descriminação na selecção, seja de ordem ideológica, religiosa, social ou qualquer outra. Qualquer acção que não respeite este princípio constitui “acto censório” passível de descriminar os autores cujas obras sejam rejeitadas e o público que delas fica privado. O bibliotecário deverá a todo o momento ter consciência que o desenvolvimento de uma colecção deve obedecer a critérios normativos objectivos e não a um qualquer determinado ponto de vista seu ou de terceiros.
Cabe ao bibliotecário isentar-se de juízos de valores ou influências que o levem a rejeitar qualquer obra. Igualmente não deverá promover inclusões à revelia da política de desenvolvimento, constituindo isto também um “acto censório”, porque ao preferir publicações, está a preterir outras mais adequadas.
Concluindo, em minha opinião, o bibliotecário é o garante de que a política de desenvolvimento é bem aplicada, necessitando para isso de preparação académica, de uma abrangente cultura e de sentido crítico que lhe permitam discernir o essencial do acessório, contribuindo para a construção de uma plena cidadania através do livre acesso à informação.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A Geração de 70 e a Geração de Orpheu

Existem vários pontos em comum nos objectivos da geração de 70 e da geração do Orpheu e também do grupo do cenáculo. Portugal era um país isolado, atrasado no seu cristianismo hipócrita, em más práticas políticas, na literatura e nos costumes ultra-românticos e num medíocre meio cultural. De uma ou de outra forma, as personalidades que se reuniram nos grupos acima mencionados sentiram necessidade de agitar consciências e de “dar uma pedrada no charco”, naquele que, na minha opinião, ainda hoje é o fatalismo nacional. Estes movimentos culturais pretendiam criar uma nova mentalidade portuguesa, aberta aos movimentos europeus, ao modernismo e, na fase do Orpheu, essa mentalidade seria inclusivamente criadora de cultura europeia, superando o ascendente das grandes nações da Europa. Se a geração de 70 queria abrir o país e as mentalidades a um europeísmo, a geração de Orpheu aspirava a levar Portugal para a Europa, em função do que sentiam ser o universalismo nacional.
Outra diferença entre as duas gerações é o completo alheamento de Orpheu em relação à política, enquanto a geração de 70 foi marcadamente interventora ao nível social, politico, plena de sentido ético, pedagógico e reformista. A geração de 70 assumiu a necessidade de ruptura não só com o conservadorismo artístico, como também com o isolamento político, social e cultural que se vivia em Portugal. A geração de Orpheu visava uma revolução de âmbito estético-cultural. Como viria a referir mais tarde Almada Negreiros a opinião política religiosa, literária, artística, filosófica, científica era-lhes completamente alheia. Pessoa e Sá Carneiro e Almada visavam uma ruptura com o passado tentando criar de forma completamente inovadora.
Nestes dois casos raros, ou três se considerarmos o grupo do cenáculo, no universo da cultura portuguesa, o essencial é a interpelação a Portugal efectivada por estas gerações de jovens, preocupados em retirar Portugal do marasmo intelectual e da hipocrisia em que vivia. No primeiro caso, a geração de 70, a interpelação foi além dos formalismos literários, intervindo também no campo social, político e ético, abrindo as portas à Europa. Na geração de Orpheu, é o carácter universalista de Portugal que é espicaçado para se impor à Europa, mormente através da estética.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Os livros têm vida

Descobri há alguns dias um site que permite fazer trocas de livros usados. O principio é simples: por cada 10 livros disponibilizados dão-nos a oportunidade de pedir um à nossa escolha de entre os disponibilizados por outros membros. Por cada livro nosso que for enviado, podemos também pedir outro.
O que me custou foi seleccionar 10 livros de que esteja disposto a desfazer-me, mas lá consegui.
Entretanto estou ansioso por receber o livro que pedi, "A Tia Júlia e o Escrevedor", de Llosa. Para além de me ir chegar a custo zero, é um livro que traz, para além da história que o autor nos conta, a história da vida que já teve nas mãos de outros leitores.