quinta-feira, 27 de setembro de 2012

É urgente o amor, Eugénio de Andrade


É urgente o amor. 
É urgente um barco no mar. 

É urgente destruir certas palavras, 
ódio, solidão e crueldade, 
alguns lamentos, 
muitas espadas. 

É urgente inventar alegria, 
multiplicar os beijos, as searas, 
é urgente descobrir rosas e rios 
e manhãs claras. 

Cai o silêncio nos ombros e a luz 
impura, até doer. 
É urgente o amor, é urgente 
permanecer. 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

¡Pra Habana!, Rosalía de Castro


(...)
Este vaise i aquel vaise,
e todos, todos se van.
Galicia, sin homes quedas
que te poidan traballar.
Tés, en cambio, orfos e orfas
e campos de soledad,
e pais que non teñen fillos
e fillos que non tén pais.
E tés corazós que sufren
longas ausencias mortás,
viudas de vivos e mortos
que ninguén consolará.
(...)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Cavalo à Solta, José Carlos Ary dos Santos


Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve breve
instante da loucura.

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa.

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo.

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo.

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.

Amigo, Eugénio O'Neill


Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Make You Feel my Love, Bob Dylan


When the rain is blowin' in your face
And the whole world is on your case
I could offer you a warm embrace
To make you feel my love.

When the evening shadows and the stars appear
And there is no one there to dry your tears
I could hold you for a million years
To make you feel my love.

I know you haven't made your mind up yet
But I would never do you wrong
I've known it from the moment that we met
No doubt in my mind where you belong.

I'd go hungry, I'd go black and blue
I'd go crawlin' down the avenue
No, there's nothin' that I wouldn't do
To make you feel my love.

Though storms are raging on the rollin' sea
And on the highway of regrets
Though winds of change are throwing wild and free
You ain't seen nothin' like me yet.

I could make you happy, make your dreams come true
Nothing that I wouldn't do
Go to the ends of the Earth for you
To make you feel my love.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Quem morre? de Martha Medeiros



Morre lentamente 
quem se transforma em escravo do hábito, 
repetindo todos os dias os mesmos trajectos, quem não muda de marca 
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou não conversa com quem não conhece. 
Morre lentamente 
quem faz da televisão o seu guru. 
Morre lentamente 
quem evita uma paixão, 
quem prefere o negro sobre o branco 
e os pontos sobre os "is" em detrimento de um redemoinho de emoções, 
justamente as que resgatam o brilho dos olhos, 
sorrisos dos bocejos, 
corações aos tropeços e sentimentos. 
Morre lentamente 
quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho, 
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho, 
quem não se permite pelo menos uma vez na vida, 
fugir dos conselhos sensatos. 
Morre lentamente 
quem não viaja, 
quem não lê, 
quem não ouve música, 
quem não encontra graça em si mesmo. 
Morre lentamente 
quem destrói o seu amor-próprio, 
quem não se deixa ajudar. 
Morre lentamente, 
quem passa os dias queixando-se da sua má sorte 
ou da chuva incessante. 
Morre lentamente, 
quem abandona um projecto antes de iniciá-lo, 
não pergunta sobre um assunto que desconhece 
ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe. 


Evitemos a morte em doses suaves, 
recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior 
que o simples fato de respirar. Somente a perseverança fará com que conquistemos 
um estágio esplêndido de felicidade. 

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O Corvo de Edgar Allan Poe traduzido por Fernando Pessoa


Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!

The Raven by Edgar Allan Poe


Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'

Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels named Lenore -
Nameless here for evermore.

And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'

Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.

Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.

Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'

Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.

Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.
Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'

But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'

Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'

But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'

This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!

Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels named Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels named Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.'

`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'

And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!

Ensaio sobre Arte


Hoje, mais do que nunca, a arte deixou de estar confinada a locais específicos e as manifestações artísticas podem surgir em praticamente qualquer local. O conceito de palco tornou-se muito abrangente. As performances deixaram os palcos “tradicionais” das salas de espetáculo e expandiram-se virtualmente por todos os locais onde o artista sinta que pode expressar a sua arte.
Com isto, penso que os artistas também se multiplicaram e as artes evoluíram para além das suas fronteiras mais conservadores chegando a limites que impõem que se coloque a pergunta “o que é a arte?”. A outra questão, “Quando há arte?”, pode efetivamente servir de resposta à primeira questão, abrindo outras questões.
Não só por esta razão, a definição de arte, ou melhor, a delimitação do que é arte ou obra de arte é hoje bastante difícil e polémica.
Comecemos por distinguir duas perspetivas de avaliação, a descritiva e a valorizativa. De certa forma estas duas perspetivas respondem às questões colocadas anteriormente. Parece-me ser inquestionável que uma apresentação musical será uma manifestação artística, pelo menos no seu aspeto tentado. Contudo, se os músicos não souberem interpretar a peça por limitações técnicas ou se não conhecerem a peça o suficiente para realizar uma boa apresentação, julgo que não haverá arte, apenas uma tentativa de performance artística falhada. Mais difícil será avaliar se o músico decidir dar um cunho pessoal à peça. Pensemos, por exemplo, em uma adaptação de uma peça clássica. O resultado será certamente polémico e muitos não o considerarão arte.
Teoricamente não deveria ser difícil classificar uma obra de arte dado existirem critérios objetivos que o permitem. Apesar disto, obra de arte é, cada vez mais, um “objeto” de difícil definição que necessita de enquadramento temporal e espacial.
O próprio conceito de arte e a teoria da arte têm evoluído originando várias forma de entender, explicar e olhar para a arte.
É o caso das teorias essencialistas, que defendem que existem propriedades intrínsecas às obras de arte. Ora, de forma a colocar em prática esta teoria seria necessário elencar essas propriedades intrínsecas. Depressa se chegaria à conclusão que, elencando essas propriedades, existiriam objetos comuns que poderiam ser obras de arte e obras de arte que não apresentavam nenhuma dessas propriedades. A própria arte, neste caso, se encarregou de votar uma teoria ao fracasso.
As teorias estético-psicológicas procuram explicar a arte sob o ponto de vista das experiencias que provocam tentando, a partir daí, sistematizar o conceito. Trata-se de experiências estéticas que, contudo, envolvem variáveis de vária ordem que não permitem que sejam isoladas e caracterizadas não sendo assim possível construir uma definição.
De uma forma radical surgiu nos anos 50 uma teoria que se contrariava a si própria na medida em que definia a arte como indefinível, ou seja, procurava-se agora não definir o que é arte mas sim tentar encontrar um sentido para a arte.
As teorias da arte desembocam, nos anos 60, nas teorias institucionais que defendem a arte como algo que reúne uma série de aspetos que lhe conferem poder ser apreciadas por pessoas e ser alvo do seu juízo. Neste caso, existe um mundo da arte institucional que leva a que uma obra de um determinado autor consagrado não seja avaliada pelas suas qualidades mas apenas por se tratar de uma obra de um consagrado.          
Apesar de toda a dificuldade e controvérsia em torno desta temática, não considero que exista uma crise de valores. Parece-me isso sim que sempre que existe evolução haverá quem entenda que se está perante uma involução, uma destruição dos valores existentes ou um ataque ao estabelecido.
Não se pode responder às questões formuladas de forma matemática. A arte, seja qual for a forma física que assuma, será sempre uma forma de expressão, uma visão do mundo, uma tentativa de o transformar. A arte pode surgir até mesmo sem que o seu autor seja um artista ou tenha intenção de fazer arte. O inverso também pode ser verdadeiro.
Resumindo, arte é uma forma de expressão que será sujeita ao crivo da crítica e à avaliação dos espetadores.  

A Teoria Hipodérmica e o Modelo de Lasswell


No período entre as duas guerras mundiais ocorridas no século passado, surgiu a teoria hipodérmica, a primeira a tentar compreender e explicar o fenómeno da comunicação de massa e o seu efeito sobre as pessoas.
Trata-se de um período histórico muito conturbado, altura em que emergiram na Europa vários regimes absolutos (Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, União Soviética). Associado a alguns destes regimes surgiram os primeiros fenómenos de comunicação em massa.
Também as democracias (Inglaterra, França, Estados Unidos) tiveram necessidade, face ao esforço necessário para a união das nações em torno de um objetivo, de recorrer à comunicação em massa.
É também por altura dos anos 20 do século passado que se assiste à emergência de uma sociedade de consumo, sendo certo que uma sociedade de consumo necessita de mecanismos de comunicação e publicidade para promover os seus produtos.
Por esta altura assiste-se igualmente à proliferação de meios de comunicação, sendo este facto, por um lado, causa, e por outro consequência da massificação da comunicação.
A sociedade de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX estava também a sofrer grandes modificações motivadas pelas consequências da industrialização e consequente afluência de pessoas às cidades, o incremento no comércio, motivado também em parte pela massificação da sociedade, a revolução nos transportes e a emergência de valores como a igualdade e a liberdade.
As duas guerras mundiais vieram acelerar ainda mais a revolução social em curso.       
A teoria hipodérmica é precisamente a resposta aos fenómenos referidos, por parte dos estudiosos. Em resultado da análise e estudo desses fenómenos de comunicação em massa, surgem as primeiras respostas e soluções para a criação de sistemas de comunicação de massas. Ou seja, a necessidade conduziu à criação de uma ferramenta e o estudo levou ao aprimoramento das ferramentas existentes.
É a partir desta altura que se encaram os meios de comunicação como capazes e uteis para moldar opiniões e direcionar as pessoas no sentido desejado pelo comunicador. A comunicação deve, no contexto deste período histórico, ser entendida como forma de manipulação e menos como forma de informação.
A teoria hipodérmica pode ser caracterizada como uma abordagem global ao estudo dos media, não levando em conta as especificidades de cada um. Da mesma forma entende que a reação provocada pela comunicação é homogénea em todos os indivíduos, não dando importância às diferenças entre cada um e não assumindo as diferentes formas de perceção e cognição humanas.
Hoje sabemos que uma determinada mensagem terá impactos diferentes em diferentes indivíduos, impactos esses condicionados por diversos fatores socioeconómicos, culturais, entre outros. A teoria em apreço considera uma massa como um grupo homogéneo de indivíduos, ainda que provenham de diferentes ambientes sociais.
A teoria hipodérmica enfoca-se essencialmente no tipo de estrutura social existente e na estrutura social dos indivíduos, não dando relevância às especificidades próprias de cada um dos indivíduos seguindo o que pensava Freud quando, a propósito das massas, defendia existir uma “alma coletiva” que, de certa forma, inibia as individualidades de cada um, à exceção dos afetos e dos instintos. 
Partindo das premissas acima referenciadas, a teoria hipodérmica procura estudar os efeitos dos media numa sociedade de massas partindo dos princípios que, como já referi anteriormente, as mensagens são recebidas de forma homogénea por todos e que as mensagens surtem efeito instantânea e inevitavelmente porque provocam emoções que não são controláveis pelos indivíduos.
Desta forma a comunicação em massa transforma-se num veículo de domínio e controlo de sociedades que permite impor correntes de pensamento e manipular as próprias emoções das pessoas. Por esta ótica é possível compreender e enquadrar a propaganda exercida pelos vários regimes, no período entre guerras, no sentido de motivar as pessoas para um objetivo de união em torno de uma nação.
De salientar ainda que esta teoria defendia que as sociedades industrializadas contribuíam para a alienação e isolamento dos indivíduos, tornando mais fácil a sua manipulação.
Esta teoria está fortemente baseada, na sua fundamentação psicológica, na teoria do behaviourismo. O behaviourismo defendeu, na psicologia, a substituição do estudo dos processos mentais e a passagem ao estudo dos comportamentos observáveis através de métodos científicos. Comportamentos observáveis seriam então todos aqueles que partiam de um estímulo exterior.
Os behaviouristas acreditavam no paradigma de Pavlov de que a um determinado estimulo iria corresponder uma determinada reação. Nesta perspetiva seria possível, através de estímulos, obter reflexos condicionados.
O modelo comunicativo da teoria hipodérmica segue este postulado. Nesta perspetiva, os mass media são agentes que transmitem estímulos para o seu público, aos quais irão obter respostas condicionadas pelo próprio estímulo.
A falta de relações interpessoais das sociedades industrializadas contribuía ainda mais para o isolamento do individuo e para a potenciação da resposta esperada perante o estímulo que lhe era transmitido, ou seja, o isolamento dificultava o aparecimento de formas de pensamento que contrariassem a reação condicionada esperada, induzida pelo processo comunicativo.
Desta forma a teoria hipodérmica pressupõe a existência de um estímulo-resposta indissociáveis. Os mass media seriam a rede que controla esses estímulos em busca da resposta dos indivíduos.
Assim, a teoria hipodérmica defendia que os meios de comunicação tinham toda a capacidade de controlo sobre o individuo, relegando um pouco a importância do restante processo de comunicação e a forma como o mesmo se desenrola.
O modelo de Lasswell vem, em 1948, colmatar essa lacuna e aprofundar o estudo do modelo de comunicação. Finda a análise, verificar-se-á existirem algumas oposições à teoria hipodérmica, nomeadamente ao nível do resultado final do processo comunicativo.
No modelo de Lasswell é analisado o processo comunicativo recorrendo à decomposição do mesmo em várias partes, que se constituem como perguntas, nomeadamente: Quem? Diz o quê? Através de que canal? A quem? Com que efeito? Esta decomposição aparece um pouco em contraponto com o paradigma da teoria hipodérmica onde as perguntas são: Quem obtém o quê? Quando? De que forma?
Da análise das questões acima resulta a evidencia que Lasswell confere importância ao sujeito, situação que não acontecia com a teoria hipodérmica. Na teoria hipodérmica existia um emissor que em determinado tempo obteria uma determinada reação utilizando um método. No modelo de Lasswell o efeito que determinada mensagem produz já depende do recetor, que deixa de ser uma entidade abstrata, passando a ser alvo de estudo.
Neste caso, abandona-se a ideia de que os indivíduos são simples peças que se encaixam para formar uma sociedade, desprovidos de pensamento próprio e indefesos contra a mensagem veiculada pelos media.
Essencialmente o modelo de Lasswell e a teoria hipodérmica diferem na importância que é dada ao individuo. De resto ambas acreditam no poder dos media para submeter as massas e orientá-las num determinado sentido.
Também Lasswell acredita que os fracos vínculos sociais decorrentes das sociedades modernas são uma fraqueza que permite uma maior penetração das mensagens, especialmente as de cariz emocional.
Lasswell não será um completo opositor da teoria hipodérmica, será, isso sim, alguém que aprofundou uma teoria em que acreditava e que considerava incompleta. A importância dada ao recetor no seu modelo é prova disso mesmo.
Analisando o paradigma de Lasswell verifica-se que as variáveis Quem? Diz o quê? Através de que canal? A quem? Com que efeito? compreendem, cada uma, um setor da pesquisa, desde o estudo dos emissores, do conteúdo, do controlo do que é difundido, do destinatário das mensagens e, finalmente, do efeito provocado.
As teorias da comunicação evoluíram muito desde a formulação da teoria hipodérmica e do modelo de Lasswell. Contudo, em minha opinião, o avanço que constituiu o modelo de Lasswell em relação à teoria hipodérmica, constitui ainda hoje, a base do entendimento do ato de comunicar e terá certamente servido de base a outras teorias que se seguiram.

sábado, 5 de maio de 2012

Livro do Desassossego

Li ontem, provavelmente tarde demais para o que agora desejo, um trecho do "Livro do Desassossego" que considero um dos mais sublimes até hoje escritos:
"A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para o que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite." Bernardo Soares     

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Tema e Motivo

Tema e motivo são conceitos que por vezes se confundem. Numa qualquer obra literária, o tema é o elemento central a partir do qual se desenvolve o texto e toda a estrutura. É a ideia global sobre a qual se constrói a obra literária. Assim, neste contexto, tema é sinónimo de assunto.
Podemos aqui identificar dois temas muito comuns à literatura e também a outras artes: a viagem e o amor. Ao longo de toda a história da literatura estes dois temas têm sido recorrentes, independentemente de fatores culturais, sociais, religiosos ou políticos. Esta universalidade dos temas não pode ser confundida com homogeneidade dado que os mesmos podem ser abordados sob os mais diversos pontos de vista e influências, resultando em incontáveis perceções sobre o assunto.
O motivo, como o próprio nome indica, é a razão pela qual surge determinada obra. Por outras palavras, o motivo será uma concretização mais objetiva de um tema, por exemplo, considerando o tema amor, um motivo pode ser o amor impossível. Considerando o tema viagem, um motivo pode ser a viagem interior.
Assim, o tema será sempre mais amplo e abstrato enquanto que o motivo será sempre mais concreto. O tema será algo de global ao passo que o motivo será uma parte mais definida do todo.
O mundo literário e das artes estão repletos de mitos. Mito e literatura têm a mesma origem. Os mitos surgiram da narração e a literatura, em muitos casos, é a passagem da narração a escrito.
Eurípedes e Sófocles escreveram sobre Hércules, um herói mitológico, não se sabendo ao certo se por detrás deste personagem estará ou não um homem real. Hércules, saído da mitologia grega, serviu de inspiração a numerosas representações artísticas, literárias, musicais, plásticas e dramáticas.
A título de exemplo de mito bíblico, refiro o mito da criação, que se encontra escrito na bíblia, mais concretamente no Génesis, onde Deus cria Adão, depois de ter ciado o universo, tendo depois criado a mulher a partir de uma costela de Adão.
No campo da literatura, Tristão e Isolda, é, na minha opinião, um dos melhores exemplos de mito. A história foi escrita por autores normandos no século XII, baseando-se em lendas dos povos celtas do noroeste europeu. Tristão e Isolda foram, ao longo dos séculos, ganhando várias vidas, influenciando a literatura quer na Idade Média quer no Renascimento. O mito de Tristão e Isolda foi também inspirador para a música, o teatro e o cinema.
Resta-nos o mito histórico. Para exemplificar este tipo de mito, apresento o mito do sebastianismo, a versão portuguesa do messianismo, sendo contudo de origem secular.
Portugal caiu numa crise sucessória com a morte do rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, tendo o trono português ficado nas mãos do rei de Espanha, Filipe II.
O povo nunca aceitou este domínio espanhol, surgindo daí a história de que D. Sebastião estaria ainda vivo, aguardando apenas o momento certo para voltar. A história transformou-se em lenda e a lenda em mito.
De certa forma, com D. Sebastião esfumou-se muito do que era Portugal. O sebastianismo entranhou-se de tal forma nos portugueses que durante estes séculos não houve ninguém que suprisse a falta do desejado. Ainda hoje se assiste à esperança portuguesa que algo surja como que por milagre para resolver os problemas que não queremos enfrentar.
Fernando Pessoa recuperou o sebastianismo na Mensagem e de forma mais objetiva em Regresso ao Sebastianismo, tentando motivar a nação a recuperar o seu patriotismo perdido, já num contexto completamente diferente do que fez surgir o mito. Já antes as trovas de Bandarra não deixaram que D. Sebastião morresse.
Mais recentemente, nos anos 60 do século passado, o mito chegou à música, através do Quarteto 1111 que no seu poema, curiosamente, cantava a morte de D. Sebastião, colocando, de certa forma, um ponto final no mito.
No cinema, foi Manoel de Oliveira, em Non ou a vã glória de mandar, que elevou D. Sebastião à categoria de grande guerreiro.
Também a pintura e a escultura deram alma ao sebastianismo, que para os portugueses, ainda que de forma inconsciente, é muito mais que um mito, como refere Eduardo Lourenço, no seu Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português.                      

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Conceito de Literatura

A dimensão do termo literatura encerra em si muitas dimensões, podendo significar um conjunto de escritos de um autor, de uma época, de um estilo, de um tema, de um país…         
A forma moderna do conceito de literatura surgiu no século XVIII, continuando a sua evolução até ao século XIX. Hoje, denominamos como literatura todas as obras escritas em todos os períodos históricos. Anteriormente ao século XVIII, literatura significava simplesmente texto escrito. Após essa época o conceito de literatura deixa de ter somente um aspeto quantitativo e passa a ter também um aspeto qualitativo, ou seja, deixa de referir-se apenas à gramática, à arte de ler e escrever, à instrução e à erudição.
Após o século XVIII, a literatura é entendida como arte, como uma representação do real, ou, também, uma transfiguração do real, criada pelo escritor, através da qual transmite aos leitores a sua visão e o seu sentido estético. Deixa aqui de ter a maior importância a forma para se dar a primazia ao conteúdo. Desta forma, a literatura assume-se como forma de intervenção no mundo, deixando apenas de o descrever. A visão da realidade de um escritor é criada por ele próprio não podendo se mensurável de forma científica, diferindo entre diferentes escritores.
Por alturas do século XVIII, a literatura e o estudo da literatura ganham uma dimensão diferente da que tinham tido até aí. Uma obra literária deixa de ser avaliada apenas pela sua gramática e pela sua poética, passando a ser também avaliada pelos seus conteúdos mais subjetivos, pela imagem da realidade que transmite, pela visão do seu autor.
Esta mudança não é alheia ao Iluminismo, sendo a razão desta transformação no conceito de literatura. Este movimento gerou uma vasta mudança na vida política, social e cultural na Europa. As transformações foram imensas, revelando-se também na literatura, tornando-a, como já referido mais interventiva e crítica do mundo.
Nesta fase generaliza-se também o ensino e a escrita, tornando os livros acessíveis a um maior número de pessoas. De igual modo gera-se a participação de um maior número de pessoas nos processos de tomada de decisões, ou, pelo menos, essas decisões são avaliadas de forma critica. Desta forma a visão da literatura altera-se, estando nesta fase os autores mais participativos e empenhados em transmitir a sua visão do mundo, tentando também modelá-lo.
A literatura ganha nesta fase diversas vidas uma vez que a visão que o autor pretende e pensa transmitir pode não ser a percecionada pelo leitor. Se o autor recria a realidade o leitor pode, também, a partir das palavras do autor, recriar uma outra realidade diferente da primeira. Do mesmo modo, uma obra literária pode assumir realidades diferentes ao longo do tempo, independentemente do autor e do tempo em que nasceu.

Assim, não bastará ao autor dominar a arte da escrita, deve igualmente ter uma forma sua de ver o mundo e vontade de comunicar. Desta forma a literatura é uma forma de arte, uma representação estética do mundo.

Viagem

O tema viagem é extremamente frequente na literatura ao longo dos tempos, transversal a todas as literaturas nacionais e de forma geral a todas as poéticas.
Pelos mais variados motivos, sempre existiram viagens. Fosse com objetivos mercantis, lúdicos, bélicos, religiosos, as viagens sempre existiram e sempre se refletiram na literatura.
A história de literatura está repleta de viajantes famosos: Gulliver, Cândido, D. Quixote, Marco Pólo, Ulisses, Sal e Dean, entre muitos outros.  
Existirão muitas obras literárias em que o tema principal anda em torno de viagens, sejam de cariz mais físico, sejam de cariz mais metafisico. A própria génese da literatura europeia, a Ilíada e a Odisseia, desenvolve-se em torno de viagens.
A viagem, em literatura, nem sempre tem subjacente uma deslocação de um local para outro, não é sempre um diário de bordo ou um caminho percorrido. Uma viagem pode ser um exame ao ser, pode ser uma redenção ou uma metamorfose, como em Kafka.
Uma viagem, do ponto de vista mais literal, em que um autor se desloca a um espaço que não é o seu, implica uma intrusão de ordem social e cultural. O viajante, ao encontrar uma realidade diferente da que é a sua, vai olhá-la com espirito crítico. Veja-se, por exemplo, a forma como Cândido olhou para Lisboa ou a forma como os vários personagens de A Ignorância, de Kundera, olham para a República Checa e para si mesmos. Estes diferentes olhares sobre um determinado tema ajudam a moldar a imagem global que se vai progressivamente construindo, fruto dos diferentes contributos.
A literatura em si mesma é também uma viagem. Dou aqui como exemplo O velho que lia romances de amor, que nos transporta através de uma narrativa quase fotográfica à selva amazónica.
Da análise do tema torna-se até possível traçar uma evolução histórica do que é uma viagem, distinguir conceitos que à partida poderiam confundir-se, como viagem, peregrinação e turismo. Esta análise resulta, naturalmente, de uma perspetiva comparatista da literatura.   
Resta concluir que no âmbito da literatura comparada, o tema viagem é um inesgotável filão de matéria-prima. Da mesma forma, outros temas seriam igualmente profícuos em possibilidades de análise.
“Desde o seu início, os estudos literários e as artes da interpretação têm sido comparativos” (STEINER:2003). Em minha opinião, o simples ato de ler, é, ainda que de forma inata, uma ato comparatista. Ao tentar definir o que se leu, por exemplo, tentaremos encontrar uma influência ou um sucedâneo que melhor enquadre o que pensamos de determinada obra.
Weltliteratur, designação inventada por Goethe, define maravilhosamente o que se pode designar por literatura global. As fronteiras dos países e das línguas esbatem-se e torna-se possível encontrar pontos de contacto entre realidades aparentemente distantes.
Deste conceito surgem as apreciações mais díspares sobre temas comuns. Por exemplo, Paris é retratada por inúmeros autores ao longo dos anos, cada um com a sua perspetiva mas todos contribuindo para uma imagem imaginária de uma cidade.
O comparativismo permite estudar a fundo as relações entre as diversas literaturas, as suas linguagens, o seus imaginários, a forma como cada uma trata um mesmo tema e, essencialmente, o que há de comum e de diverso entre cada uma.
Acima de tudo, o comparativismo permite que se estudem as diversas literaturas como uma só. Neste aspeto, o tema viagem, sendo recorrente e amplamente utilizado pelos mais diversos autores permite um aprofundamento que de outra forma seria difícil de alcançar.