sábado, 3 de dezembro de 2011

Intemporalidade

Dois médicos caminham em direção à praça central da vila. Era noite. Vão trocando algumas considerações sobre o paciente que havia dado entrada nessa manhã no hospital onde ambos trabalham. Trata-se de um caso de fácil tratamento que não representaria perigo algum para qualquer pessoa. Contudo, o paciente em causa, por motivos religiosos, não pode receber o tratamento indicado para a situação. Uma questão de simples e rápida resolução transforma-se de repente e por motivos alheios à competência dos clínicos, numa situação que faz perigar a vida do doente.
Um dos médicos, mais novo, não compreendendo que possam existir razões que se coloquem à frente da salvaguarda da vida humana, debate-se com a sua consciência. O mais velho e experiente, ainda que com grande mágoa e frustração, tenta explicar que o respeito pelas leis, ainda que não se reveja nelas, deve sobrepor-se ao que individualmente consideramos correto ou incorreto.
Chegados à praça, ocupam uma mesa numa esplanada, protegida da noite sob uma arcada, continuando o debate sobre qual o valor mais alto, o imperativo de consciência ou o imperativo legal, ainda que o imperativo legal seja, no caso, uma lei de Deus, entendida com tal apenas pelos praticantes daquela religião.
Enquanto decorria esta dramática troca de ideias, a praça assistia a uma peça de teatro, sem palco, em que os atores se misturavam com os transeuntes e com alguma assistência, cativada pelo inusitado da representação que usava a ágora da vila como cenário.
Reconheceram de imediato a peça. Nesse momento duas atrizes continuavam a atuação mais junto à mesa onde se tinham sentado. Eram Antígona e Isménia que se confrontavam com a morte dos dois irmãos e com a proibição, imposta por Creonte, de dar a Polínice um enterro digno.
Antígona não concebia que não fosse dado um enterro digno a seu irmão, assumindo que ela própria sepultaria o irmão, levando as suas forças ao limite.
Isménia tenta em vão convencer a irmã a não levar por diante o que considera ser uma loucura. Amaldiçoada por Antígona, Isménia reconhece no ato da irmã a dedicação ao irmão que ama.
O clássico de Sófocles transbordava das falas das duas protagonistas com a força de uma peça sempre atual, uma peça de onde, ainda hoje, é possível retirar ensinamentos. Um clássico é isso mesmo, uma obra que vale sempre a pena ler, ou melhor, reler, uma vez que quem realmente aprecia boa literatura acaba sempre por voltar aos clássicos, como nos sugere Calvino.
No plano estético são obras cuja preocupação com a forma as elevou ao patamar da imortalidade, tornando-as em referências obrigatórias no campo da história da literatura. Para além da forma cuidada própria das civilizações Grega e Latina, é igualmente impressionante a atualidade dos seus conteúdos e a sua abrangência.
A própria forma pouco ortodoxa como a peça estava a ser encenada demonstra a intemporalidade da mesma. Uma obra com cerca de 2500 anos, que permite a um encenador tamanha liberdade criativa demonstra bem o génio encerrado nos seus escritos.
Após estes momentos em que o seu pensamento deambulou pelos milénios que a peça sobreviveu sempre atual, o jovem médico imaginou Antígona a tratar o seu paciente. A sua força seria suficiente para impor a vontade da sua consciência e salvar o doente de uma morte certa. A mesma força que a levou a sepultar o seu falecido irmão, arriscando a própria vida.
Do outro lado Isménia, certa do que é correto, mas receosa de enfrentar a ira dos que ainda que não estando corretos têm poder para impor a sua lei.
Era impressionante a semelhança entre a situação que vivia e a situação que Sófocles descrevera séculos atrás.
Muito em breve a sorte do seu doente estaria decidida. O jovem médico só esperava que não fosse em tragédia. Pensou melhor e concluiu que dificilmente não haveria tragédia. Salvasse ou não salvasse o doente a tragédia aconteceria.
O pensamento levou-o novamente para a peça que decorria. Os atores estavam agora mais longe. O local tinha ficado mais sossegado. De repente voltou a ouvir o seu colega que entretanto tinha continuado a falar durante o tempo em que todos os pensamentos tinham passado pela sua cabeça.
Já tinha lido Antígona duas ou três vezes sem nunca se ter dado verdadeiramente conta do caráter intemporal das questões que continha. A história que vivia passava-se nos dias de hoje mas de repente viu-se a imaginar quantas pessoas, no passado, olharam e se reviram nesta peça e quantas a olhariam no futuro para se reverem.