sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Memória Familiar

A “história constitui-se apenas se a olharmos e, para a olharmos, devemos estar excluídos dela”1. Os acontecimentos históricos não são vividos. Em oposição a memória colectiva é revivida a cada momento que passa.
Para a existência de uma memória colectiva é essencial a existência de núcleos familiares que através da criação de memórias familiares, constroem uma identidade cultural. 
Pierre Bourdieu refere que cada chefe de família que se constitui retratista torna-se num historiógrafo. Cada álbum de família é um retrato fiel de um período, de uma época, de uma sociedade.
Teria sido possível reconstruir o centro de Varsóvia sem o recurso à fotografia? A cidade reconstruída só é monumento por ser uma réplica da destruída. A fotografia faz reviver o passado, avalizando a história, retratando monumentos, com uma certeza que nenhum escrito pode dar.
Às fotografias de família juntam-se os postais comprados, criando assim um verdadeiro “arquivo” da memória familiar que evoca momentos que merecem ser recordados e transmitidos às gerações vindouras.
À semelhança dos gabinetes de curiosidades cada família é também um repositório de colecções de objectos da mais variada ordem, móveis, cartas, diários, documentos, etc. Estes objectos, parte de um passado, são bens com história, embrionários dos actuais museus.
Desde os vulgares objectos do dia-a-dia a colecções interessa preservar este espólio, fundamental para o entendimento da identidade cultural.
Resta ainda mencionar as tradições familiares, os acontecimentos, as datas, as histórias dos avós que fazem a ponte entre as gerações, que preservam a memória do passado, mantendo, renovando e transmitindo a identidade familiar.
Considerando assim a inserção das famílias numa camada da sociedade mais ampla e que comunga do mesmo modo de vivência familiar, surge a memória colectiva, fruto de intrincadas interacções.
Das famílias surge assim o fundamento moral da sociedade. Este património familiar, transmitido de geração em geração importa ser preservado.
A preservação deste património é levada a cabo de diversas formas e com diferentes métodos. Consideramos a transmissão oral entre gerações como uma dessas formas, a memória-mensagem. Uma matriarca ou um patriarca de uma família reúnem em si a memória de várias gerações, que vão transmitindo.
Os álbuns de família são outra forma de preservação da memória familiar. As fotografias e os postais que retratam uma época ou um acontecimento tornam-se na sua memória visível.
Os objectos recolhidos e guardados e as caixas de documentos completam esta memória familiar sem a qual não seria possível a existência de um património cultural.
O património cultural, enquanto conjunto de bens materiais e imateriais com valor próprio relevante para a identidade de um povo surge, em larga medida, da preservação da memória familiar. Sem esta preservação certamente seria impossível manter viva a identidade dos povos e passar às gerações vindouras a herança do passado.
Das bases de onde surge o património, surge também o património histórico que parte as barreiras familiares e adquire uma vocação universal e transversal a um povo.
Saliento aqui o papel da DGA/TT na preservação do seu arquivo e do seu fundo, no apoio a outros arquivos e na divulgação daquilo que é, no fundo, a nossa identidade cultural.
Quem como eu nasceu e cresceu no seio de uma família numerosa e num meio social relativamente pequeno entende bem esta problemática. As famílias enquanto unidade social transmitem valores, tradições e bens aos seus elementos mais novos, o património e a memória de que se falou. Mas as famílias não são unidades estanque, ou seja, interagem entre si trocando experiencias, tradições e ampliando a memória.
Esta partilha e esta dinâmica fazem a nossa memória colectiva uma “coisa viva”. Na minha opinião, esta dinâmica é também uma forma de preservação da nossa memória colectiva.
Actualmente, com o surgimento da “sociedade da informação”, a nossa identidade cultural ganhou novas formas de preservação e divulgação, ficando também sujeita a novas influências, a chamada globalização.
No meu entender, a memória familiar ganha, neste âmbito, importância reforçada. Não entendo a globalização como um problema ou uma coisa má, mas acredito que a preservação daquilo que é mais original e único em cada sociedade ou povo ocorrerá no âmbito mais restrito das famílias.

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