terça-feira, 21 de junho de 2011

Aquele querido mês de Agosto

O filme Aquele querido mês de Agosto é um exemplo de como as limitações orçamentais se podem tornar benéficas. Por falta de financiamento, o realizador partiu com uma pequena equipa para a região do Pinhal Interior, em busca de material documental, para quando retomasse a produção, conforme referido pelo próprio ao jornal Estadão, de São Paulo, em 2009. Contudo, apesar das dificuldades orçamentais, julgo que será o filme português mais premiado de sempre.
Analisando a ficha técnica verifica-se de imediato que vários elementos da produção foram transformados em actores. De resto, é um filme de 2008, realizado por Miguel Gomes, que foi também autor do argumento conjuntamente com Maria Ricardo e Telmo Churro, sendo produtores Luís Urbano e Sandro Aguilar, filmado em cor, com duração de 150 minutos, rotulado de documentário e ficção.
Quando se olha para os actores, constata-se o não profissionalismo dos mesmos. Considero contudo que não sendo profissionais, têm desempenhos de grande qualidade, talvez por conhecerem os temas do filme como parte da sua vida quotidiana.
A sinopse do filme não deixa adivinhar o que realmente se encontra e se vai descobrindo ao longo dos 150 minutos. Mais do que um simples filme com uma componente documental e uma componente ficcional, estes dois géneros fundem-se e vão evoluindo ao longo da acção, misturando-se por vezes e complementando-se outras. Depois de visto o filme ficam algumas questões no ar sobre o que é ficção e o que é realidade, por ser ténue a fronteira que as separa nesta produção. A contraposição dos dois géneros terá já sido explorada por Renoir e Pasolini.
Parece-me contudo que neste caso estamos mais perante uma fusão do que propriamente de uma contraposição. De facto há uma grande complementaridade dos dois géneros. Recordo por exemplo a cena de cantar à desgarrada em casa da Tânia. O que se canta é claramente parte da ficção do filme mas o modo de cantar, quem está a cantar e a situação em que canta pode também ser considerado documental. A própria banda, Estrelas do Alva, vai surgindo ao longo do filme nas partes mais documentais e nas partes mais ficcionais. E que dizer do Paulo “Moleiro”, que sendo bem real, parecerá um personagem de ficção, particularmente para quem não conhece a realidade dos dias desta zona do país.
Estes dois géneros são interrompidos por cenas da própria equipa de produção, com diálogos acerca do próprio filme.
Por todas estas razões este filme é um “outsider”, tendo sido aclamado em várias partes do mundo e em vários festivais de cinema.
O filme aborda vários temas, desde logo um tema muito explorado pelo cinema, os triângulos amorosos, neste caso uma jovem do interior do país e o seu pai possessivo e um jovem que regressa à aldeia para as férias de Verão. A música ligeira ou “pimba” é outro tema recorrente em todo o filme. Finalmente a própria região onde se filma é também um tema.
Este filme transporta-nos a uma das zonas mais esquecidas do país, a uma região desertificada de habitantes que recebe anualmente os seus emigrantes com tudo o que isso implica, nomeadamente alguns choques culturais e civilizacionais.
A região caracteriza-se por altas montanhas, aldeias isoladas, praias que são fluviais, estradas intermináveis de curvas e contracurvas, de subidas e descidas, que o filme tão bem ilustra nas viagens intermináveis dos bombeiros e na da Tânia e do Hélder, de motorizada, que parecem não ter destino.
O filme retrata esta região por vezes de forma quase fantasmagórica. Captou de forma muito intensa o misticismo das procissões, onde acontecem mesmo milagres, jura-se a pés juntos.
No período de Verão, toda esta região é “invadida” por dezenas de arraiais, bailes e concertos onde a música soa toda igual, onde os ritmos são sempre os mesmos. De repente as aldeias voltam a ganhar vida e a meia dúzia de habitantes multiplica-se por muitos.
É esta a cenografia de um filme que se passa em grande parte em planos exteriores. A música e os sons, sempre presentes, dão ao filme um sabor muito genuíno. A música “pimba” é aqui completamente assumida como parte integrante de uma forma de estar, contrariamente ao que acontece muitas vezes. No final o sonoplasta confronta o realizador com esta realidade.
Tendo nascido nesta região e conhecendo-a relativamente bem, sou de opinião que este filme nos traça um retrato extremamente fiel de uma região e das suas gentes. Felizmente não houve orçamento para fazer mais um filme de ficção sobre um triângulo amoroso. Ganhou-se um documento de grande valor antropológico, etnográfico e cultural, para além de um excelente filme que cativa quem gosta de cinema. Miguel Gomes conseguiu realizar um filme que não só ficou na história do cinema como poderá mudar a história do cinema, pelo menos o português. 

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