terça-feira, 21 de junho de 2011

Identidades literária e linguística

A Europa é um continente com grande heterogeneidade. Refiro-me a nível linguístico, sendo faladas cerca de 6 dezenas de línguas. Refiro-me também aos costumes, sendo um continente com grandes disparidades culturais, religiosas e sociais. Toda esta diversidade ocorre num território relativamente pequeno.
A Europa tem ainda outra característica que é o facto de em muitas situações as fronteiras linguísticas não coincidirem com as fronteiras políticas. Existem assim vários países onde se fala mais do que uma língua existindo também línguas comuns a vários países. Neste último caso a mesma língua pode assumir algumas características consoante o país onde é falada.
Desta forma a Europa é um continente que por si só estimula a que as coisas não sejam lineares. De facto existem inúmeros exemplos de autores que escreveram em várias línguas ou que desenvolveram a sua obra em vários países.
Exemplo desta situação é a vencedora do Prémio Alemão do Livro de 2010, Melinda Nadj Abonj, uma húngara sérvia, que vive na Suíça, que não teve o alemão como língua materna. De resto as literaturas europeias estão repletas de situações semelhantes: Fernando Pessoa escreveu em inglês, Emil Cioran, Painat Istrati e Alexandru Macedonski escreveram em francês, Jöldan Foldes escreveu em inglês, Kafka escreveu em alemão, Yeats e Synge escreveram em inglês e Erasmo optou mesmo por escrever em latim.
As situações acima referidas podem ocorrer por várias razões, desde logo a simples vontade do autor que o pode levar a escrever numa língua estrangeira. Poderá também justificar-se a escolha dos autores pelo facto de existirem línguas mais universais. Logo, escrevendo numa dessas línguas, o inglês ou o francês, as possibilidades de fazer chegar a mensagem a mais leitores poderá aumentar muito.
Finalmente, cada língua tem a sua própria complexidade e as suas próprias potencialidades, podendo os autores entender que se conseguem expressar melhor em qualquer outra língua que não a sua língua materna.
Muitas outras razões podem levar um autor a desenvolver a sua obra em outra língua ou em outro país. Existem por exemplo autores que por razões políticas ou outras foram forçados a exilar-se, radicando-se no país de acolhimento.
Certo é que todas estas situações conduziram a uma grande riqueza nas literaturas europeias e, na minha opinião, à criação daquilo que podemos considerar uma identidade literária europeia.
Na minha opinião um escritor, por maior domínio que tenha de uma língua estrangeira, fará sempre uma abordagem a essa língua diferente de um nativo desse idioma, não necessariamente com menor qualidade, apenas de forma diferente.
De igual modo considero que um autor que opte por desenvolver a sua obra num país estrangeiro, ainda que escreva na sua língua materna, fá-lo-á influenciado por uma envolvência cultural e social diferente, resultando num produto final necessariamente diferente do que se estivesse no seu país.
Pegando no exemplo de Fernando Pessoa, a sua incursão pela língua inglesa deve-se certamente ao facto de ter tido uma educação baseada no inglês, tendo a sua infância sido passada em Durban, África do Sul. No seu processo educativo tem grande influência o contacto com a literatura inglesa.
Pessoa é sem dúvida o expoente e grande impulsionador do modernismo ou futurismo em Portugal e um dos grandes vultos de sempre da literatura e cultura portuguesas. Este é um facto inabalável podendo parecer um pouco estranho que dos quatro livros que publicou em vida três tenham sido escritos em inglês.
Neste caso concreto, sou levado a concluir que a identidade literária pode não ter qualquer relação directa com a identidade linguística. De facto, Fernando Pessoa, na minha opinião, tinha assim duas identidades linguísticas. Obviamente que falando de Fernando Pessoa, temos que falar em múltiplas identidades literárias mas considero que o facto de ter escrito também em inglês não constitui por si só uma identidade literária, até porque a sê-lo talvez não fossem os textos assinados pelo próprio Pessoa mas talvez por um heterónimo.
No que toca à recepção dos textos em inglês em Portugal, não disponho de dados que me permitam fazer uma análise objectiva e conclusiva. Parece-me contudo que num país com grande taxa de analfabetismo, a poesia, ainda mais escrita em inglês, seria assunto para elites intelectuais. Já em Inglaterra, após várias pesquisas na internet, não me parece que Pessoa tenha tido receptividade digna de registo. Não sabendo sequer se os livros de Pessoa, escritos em inglês, foram editados em Inglaterra, em nenhum local encontrei referencias à importância ou não de Pessoa na literatura inglesa.
Terminada esta análise, mais uma vez concluo que as literaturas europeias se cruzam demasiadas vezes para que não se possa falar numa literatura europeia. Haverá certamente identidades literárias partilhadas por autores de várias línguas e identidades linguísticas diferentes que traduzem identidades literárias semelhantes. 
Termino referindo o caso de Franz Kafka, um dos maiores autores de língua alemã, nascido em Praga, Áustria-Hungria, actual República Checa. A quem pertence o seu legado literário?

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